A barca do inferno, por Elisabeth Zorgetz
Hoje em dia, quando entro num ônibus na minha cidade, sinto algo muito aterrador. Uma impressão quase inexplicável, um misto de sufocamento, frustração e melancolia. As janelas semi-abertas me aprisionam, o cheiro de suor metálico me asfixia. O rosto apático das pessoas, imersas nos próprios pensamentos exaustos do cotidiano, a projetar-se sobre o trabalho que ainda lhes aguarda em casa.
Elas sentam-se próximas a mim e na verdade se encontram tão distantes, sonolentas, ébrias de fadiga e desesperança. Balançam como trapos de pano aos sacolejos do veículo. O som do motor e das portas batendo me atormenta. Mas nenhum ruído é pior do que o estalo que a catraca faz na minha passagem. Me lembra o primeiro pingo de água gelada na nuca dos banhos de inverno.
Minha apreensão a esse ruído é tão intensa que certamente me matará um dia. Me sinto tola. Me sinto burra. Me sinto egoísta, fraca e suja. Tenho tanta convicção de que não deveria estar naquele lugar, naquele momento, que minha vontade é escapar por uma janela. Não acho digno. Não é digno. Para ninguém. Sinto a mão grosseira dos abusos e tiranias sobre a minha boca, extinguindo a minha voz. Transporte público não é a barca amaldiçoada dos pobres, mas aqui convém que seja.
Convém manter o fosso social e quando possível, aprofundá-lo. Desgraçado cidadão ilheense. É enclausurá-lo num ônibus, já que na penitenciária lhe faltam alguns crimes categóricos da miséria. Por isso traço longos caminhos a pé, tropeçando nas pedras e tomando chuva. Arriscando-me na garupa de uma moto. Ao menos fujo daquela sensação de que nunca mais me libertarão daquela violência em quatro rodas. Que ficarei eternamente ignorante às suas razões e efeitos.
Porém, na minha baça liberdade, me recordo daqueles meus irmãos acorrentados aos seus assentos. Volto ao ônibus. Os passageiros me encaram, por vezes, com estranhamento. Talvez seja minha aparência aflita. Ou talvez esperem algo de mim, como esperam de cada cidadão que se levanta quando chega a seu ponto, agarrado aos canos.
Esperam que alguém se levante. E nunca mais sente.
A autora Elisabeth Zorgetz é ilheense, membro do Coletivo Reúne Ilhéus, escritora e graduanda em História na UFRGS. É membro do Núcleo de História da Dependência Econômica na América Latina e trabalha a prospecção de estratégias focais de reforma agrária no sul da Bahia.